quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Educação Liberal - continuação

Agora, se estudarmos a história do século XX, veremos uma infinidade de revoluções, golpes de estado, mudanças políticas feitas por pessoas que criticavam a situação e que diziam poder mudá-la para melhor e que produziram situações infinitamente piores. Na década de oitenta, por exemplo, um cidadão soviético consumia menos carne do que um súdito do czar em 1913. Isto significa o seguinte: Lenin e Trotsky não sabiam onde estava a porta; propuseram uma mudança não porque tinham perfeito conhecimento da possibilidade concreta de realizá-la, mas apenas porque queriam. É o caso de a gente dizer que este tipo de crítica social não é legítima: você está criticando uma situação mas não é melhor do que a situação, é apenas um componente dela; ou seja, a sua crítica não é uma crítica, é apenas uma queixa, é um sintoma da própria situação, e portanto não podemos confiar em você para resolver a situação. Na hora em que você passa por um sofrimento e diz 'ai', o 'ai' não é uma crítica válida da situação, é apenas uma expressão dela. Tanto que dizer 'ai' não vai curar você de maneira alguma.
Ao longo de todo o século XX, vemos que a crítica social, em sua quase totalidade, nunca passou de expressão ou de sintoma da situação. Raramente se viu um empreendimento vitorioso de transformação da sociedade com base na crítica, que produzisse exatamente o resultado prometido. Isto significa que, desde o tempo de Moisés ou Sócrates, a nossa capacidade de crítica social diminui formidavelmente. Simplesmente não entendemos a sociedade, não gostamos da sociedade; gostaríamos de mudá-la, mas não chegamos a perceber que nossa revolta e nosso próprio desejo de mudar são apenas sintomas da própria situação social e, portanto, impotentes não somente para mudá-la, mas até para fazer uma crítica objetivamente justa.
São essas constatações que nos colocam a necessidade de conquista de um patamar ou de uma medida justa e universal, em função da qual a crítica possa ser feita. Todo ser humano tem essa possibilidade e, de certo modo, tem esse direito porque embora seja, sob muitos aspectos, um produto, um efeito ou uma criação de sua sociedade, há algo nele que transcende a sociedade. Há no mínimo a estrutura biológica. Não houve nenhuma sociedade que mudasse substancialmente a estrutura anatomo-fisiológica do ser humano. Esta é uma constante. Portanto cada um de nós pode dizer que é fruto da sociedade brasileira? Bom, sou fruto da sociedade brasileira, mas sou membro da espécie humana e, como membro da espécie humana, existem em mim fatores estruturais constantes que já existiam antes de o Brasil existir e que vão continuar existindo depois que o Brasil acabar. Portanto, como membro dessa espécie animal chamada espécie humana, tenho em meu próprio corpo um dado que transcende a situação histórica em que vivo. É claro que não é só a estrutura anatomo-fisiológica do homem que transcende a situação histórica, existem muitos outros aspectos.
Ao longo da história humana, muitos desses elementos estruturais, constantes e universais foram se revelando à nossa consciência. E foram registrados em obras, depoimentos e atos desses seres humanos. A aquisição desse legado é o que é propriamente o que chamaríamos hoje de educação liberal, que, nesse sentido, é a formação do cidadão consciente e portanto capaz de julgar não só fatos da sociedade, mas a própria sociedade como um todo.
Formar um homem desses não é fácil. As situações vão se tornando cada vez mais complexas e, de repente, vêem-se emergir no cenário da história situações absolutamente novas que, apesar de todos os dados que acumulou em toda a sua educação, você não é capaz de compreender. Surge, por exemplo, um fenômeno como o totalitarismo moderno, como nazismo, fascismo e comunismo - fenômenos supremamente esquisitos, que tudo o que a humanidade ocidental sabia até o século XIX não bastava para explicar.
A idéia de que tratados internacionais fossem feitos não para ser cumpridos, mas apenas para ser usados como armadilhas para os inimigos: isso foi uma novidade na história. Até o século XIX todo mundo acreditava que tratados eram para ser cumpridos. De repente aparece um estado, a União Soviética, que acha que não é bem assim, que não é importante cumprir os tratados, mas sim apenas assiná-los. De um momento para outro, os tratados se transformam em instrumentos não para limitar a ação dos contratantes mas, ao contrário, para dar mais possibilidades de ação contra os demais contratantes. Hitler levou essa idéia a um nível alucinante: cada compromisso que Hitler assinou foi assinado com a finalidade específica de não ser cumprido. Nos acostumamos tanto com isso que hoje achamos natural.
Certas possibilidades de uso de violência assassina contra países inimigos não entraram na cabeça humana antes do século XX. A guerra sem declaração de guerra é um exemplo: você está em guerra com outro país mas não sabe; de repente soltam uma bomba no seu território. Isso foi mais uma novidade do século XX. Outro exemplo é o ataque sistemático às populações civis: não existe mais a noção de campo de batalha. O que é campo de batalha? É o lugar onde você vai para fazer a guerra. No século XX isso desapareceu. Não há mais campo de batalha, há guerra onde você estiver.
Quando começaram a suceder, esses fatos deixaram as pessoas desorientadas; não havia como explicar. Vemos, portanto, o avanço do totalitarismo no século XX e a impotência da inteligência humana para explicar esse fenômeno na época, já que somente hoje temos uma compreensão mais adequada do fenômeno totalitário. Notamos, então, que às vezes acontecem coisas novas e que mesmo a acumulação de todo o legado desses depósitos de consciência adquiridos ao longo dos séculos não é suficiente para nos situar. Seria necessária uma outra abordagem e as primeiras tentativas de diagnóstico falham, porque estão comprometidas de certo modo, inconscientemente, com o mesmo circuito produtor de idéias que geraram o fenômeno. Você tenta investigar o fenômeno, mas faz parte dele; tenta diagnosticar a doença, mas também está doente. Um exemplo característico é o livro da Hannah Arendt sobre o totalitarismo. Ela investiga, investiga e pega a pista certa: diz que os fenômenos totalitários não querem criar uma nova sociedade, querem modificar a natureza humana. A pista é exatamente esta. Só que, mais adiante, escorrega e diz que acredita na possibilidade de mudar a natureza humana, apenas não por meios violentos. E com isso aí a descoberta influencia a visão de quem descobriu, porque se é possível para o Estado mudar a natureza humana por meios não-violentos então, prestem bem atenção, a diferença específica do totalitarismo deixa de ser o projeto de mudar a natureza humana e passa a ser apenas o emprego da violência. A especificidade do fenômeno, portanto, se perdeu. Assim, Arendt não consegue levar o diagnóstico até o fim. Mas ela escreveu o livro no calor do momento e não podia enxergar a situação com toda a clareza; foi um dos primeiros diagnósticos abrangentes que se tentou. Se investigasse mais um pouco veria que, ao longo dos séculos, não surgiu nenhuma idéia ou doutrina política que visasse a mudar a natureza humana. Todas tomavam a natureza humana, fosse qual fosse, como pressuposto. Consideravam-na fenômeno de ordem natural, cósmica, biológica, no qual a sociedade não pode mexer.
Foi só no século XX que se acreditou que, através da formação de um certo Estado, leis, burocracia, se poderia mexer na própria natureza humana. É a diferença que existe entre você ser um criador de animais, como vacas e galinhas, ou você transformá-los em outra coisa: a idéia de transformá-los em outra coisa rigorosamente nunca tinha aparecido na mente humana até o século XX.
Hoje, passados cem anos, temos uma compreensão um pouco maior do fenômeno totalitário, mas para isso foi necessário remanejar todo o legado de conhecimentos e repensar a coisa sob mil aspectos. Embora não seja sempre infalível, esse processo de recuperação do legado é a única esperança que temos de entender a nossa situação existencial. Não existe nenhum outro meio. Aliás, existe um outro meio; existe o que a Bíblia chama de sabedoria infusa: Deus e os anjos infundem em você, sem que saiba. Vai dormir sem saber e acorda sabendo. Tirando esta hipótese, a única outra hipótese que existe é a da acumulação do legado da consciência humana ao longo dos séculos. A finalidade da educação liberal é exatamente esta. E isto é simples: consiste na aquisição dos documentos necessários, no estudo desses documentos e na revivescência das experiências cognitivas e existenciais que estão registradas nesses documentos. Ou seja, você vai ler a Bíblia, Platão ou Aristóteles, não no sentido apenas de adquirir informação, mas no sentido de tornar suas as experiências cognitivas que se registraram nesses documentos.
Por exemplo, Aristóteles insiste muito numa coisa que chama maturidade. Maturidade não no sentido fisiológico, mas no sentido intelectual. O homem maduro é o homem que teve certas experiências e aprendeu com elas. Uma dessas experiências é a plena experiência da norma, da existência da norma. A maior parte das pessoas simplesmente não teve isso; vê as coisas acontecerem e as opiniões se entrechocarem, mas nunca chegou a experienciar as famosas leis não-escritas de que fala a tragédia grega. Por exemplo, em Os suplicantes de Sófocles, dois jovens gregos fogem do Egito, onde o rei queria obrigá-los a um casamento que não desejavam, e vão parar numa ilha. Nesta ilha pedem asilo ao rei local. O rei fica num dilema porque, por um lado, havia uma tradição de dar asilo a quem pede e, por outro, dando asilo ele se arriscava a uma guerra contra o Egito. Ele imediatamente argumenta para os jovens: " na legislação egípcia não há nada que impeça o rei de obrigá-los a casar com quem vocês não querem, portanto o rei do Egito não cometeu nenhuma ilegalidade" . E eles respondem: " é, mas acima das leis do Egito há as leis não-escritas, há as leis divinas. A lei divina diz que ninguém pode ser obrigado a casar contra sua vontade." O rei se toca com aquilo e, em seguida, tem outro problema: o regime na ilha era constitucional e ele não era monarca absoluto. Tem, portanto, que levar o problema à assembléia. Reúne, então, a assembléia e, por meio de um longo e tocante discurso, consegue persuadir a assembléia a aceitar o risco da guerra, para não infringir as leis não-escritas.
A tragédia grega era um acontecimento cívico, não apenas um espetáculo teatral. Era um empreendimento promovido pelo governo para a educação dos cidadãos. Nessa tragédia e em muitas outras, qual é a mensagem transmitida? A idéia de que um país é obrigado às vezes a se colocar em risco para não infringir as leis não-escritas. Ou seja, esse governo argumentava contra si mesmo, contra seu interesse, e educava as pessoas assim. É claro que o momento da história em que aparece a tragédia grega é um momento excepcionalmente luminoso na história da consciência humana. Há inúmeras tragédias gregas onde se concede razão ao inimigo da pátria, o troiano. Toda a educação recebida na escola, os discursos políticos etc., induziam as pessoas ao patriotismo e a tragédia entrava como elemento compensador, para que as pessoas não tomassem em sentido absoluto os valores do patriotismo, porque esses valores eram relativizados por valores mais altos. Então, quando existe uma comunidade política capaz desse nível de consciência, é evidentemente um momento luminoso da história. E o milagre grego de que falamos não pode, evidentemente, ser encarado apenas em termos de realizações estéticas ou científicas, mas sobretudo como um momento culminante na história da consciência humana.
Existem muitos outros momentos de consciência exemplar na história. Um é a história que se passa com o genro de Maomé, Ali. Um excelente orador, cujos discursos estão entre os mais belos da literatura universal, Ali foi um fracasso total como político, mas um grande guerreiro. Conta-se que, numa das batalhas, ele encurralou um inimigo, conseguiu desarmá-lo e encostou a espada em sua garganta. O inimigo então o xingou; ele ficou perplexo, colocou a espada na bainha e foi embora. Em seguida, o inimigo diz: " você está com a espada na minha garganta, me derrotou, e só porque o xingo... venci você com um xingamento?" Ele diz: " não, não é isso, é que fiquei com raiva de você, e se o matasse, eu não seria mais um guerreiro, seria um assassino, porque o teria matado por raiva pessoal e não tenho nada contra você. Isso aqui é guerra.." Esta ética guerreira durou séculos. Até o século XIX ainda havia amostras de um espírito de luta cavalheiresco que predominava na guerra.
Há outro episódio famoso que se passa entre príncipes muçulmanos e espanhóis. Uma batalha estava prestes a ocorrer em determinado lugar e os muçulmanos erraram o caminho. Em vez de parar no lugar da batalha, foram parar no castelo do príncipe espanhol que iria combatê-los. Só que o castelo estava vazio, só estavam lá a rainha e suas aias, mucamas e crianças. Conta-se que a rainha saiu do castelo e passou-lhes um sabão: "não têm vergonha de encurralar mulheres e crianças assim?" Eles pediram desculpas e foram embora.
Se comparamos isso com o panorama do século XX, onde vemos, não massas de população, mas elites intelectuais capazes de se fecharem completamente à metade da realidade, para encarar somente a metade que lhes interessa, então, de fato, nossa comunidade política está infinitamente abaixo do nível de consciência daquelas comunidades.
Imaginem o que aconteceria hoje em qualquer país do mundo. O que aconteceria com o sujeito que dissesse que não ocupou a cidade porque só havia mulheres e crianças? Iria para a corte marcial. Seu dever militar se sobrepõe ostensivamente às normas não-escritas, as quais não são sequer levadas em consideração. Elas simplesmente não existem mais. O que há hoje, não é só um fenômeno de imoralidade, mas um fenômeno de baixo nível de consciência, porque o indivíduo acredita que aquele interesse militar imediato é real e que a norma não-escrita é irreal. Ele infringe a norma não-escrita, porque acredita que ela não existe, que é apenas invenção, produto cultural, crença. Só conhece a norma não-escrita, por referência escrita ou oral, ouviu falar que existe, mas não tem experiência pessoal dela. Não há nem a situação do indivíduo que, através da educação, chegou a perceber que essas normas não-escritas efetivamente existem.
Dike é a idéia grega justiça cósmica; é uma experiência que se pode fazer, não uma invenção cultural; uma experiência que requer certo nível de maturidade. Então, quando Aristóteles enfatiza que somente o homem maduro pode guiar a comunidade, está se referindo aos homens que conseguiram absorver um certo número de experiências decisivas, que colocam a sua alma um pouquinho acima do nível de consciência de sua comunidade. Não quer dizer que precisem ser santos ou profetas ou heróis, mas são simplesmente pessoas que têm uma amplitude anímica um pouco mais vasta, porque chegaram a ter certas vivências. Quando não temos isso e, não obstante, temos uma formação universitária, um diploma, e as julgamos as situações evidentemente pelas experiências que temos. No começo do século XX, houve uma série de antropólogos que saíram pelo mundo fazendo recenseamentos dos usos e costumes dos vários lugares. Quando notaram que aquilo que era proibido num lugar era obrigatório no outro, tiraram a conclusão de que todas as normas eram culturalmente relativas. Isto foi especialmente divulgado no mundo por Margareth Mead e Jules Benedict. Eles fizeram um sucesso tão grande que, hoje em dia, essa convicção do relativismo antropológico é tida como um dogma: todas as morais são culturalmente relativas. É no mínimo curioso que nunca ninguém tenha feito a seguinte pergunta: me aponte uma sociedade onde o homicídio seja legítimo? Ou, me aponte uma sociedade onde o casamento seja proibido. Ou, me aponte uma sociedade onde qualquer forma de conhecimento seja proibido. Simplesmente não existem tais sociedades. Isso quer dizer que, por baixo da variação acidental de normas aqui ou ali, existe uma infinidade de normas universais que nunca foram contestadas por civilização ou cultura alguma. A lista das regras e normas permanente é infinitamente maior do que a das normas variáveis. Então isso quer dizer que esses antropólogos, baseados em sua pequena experiência acidental de ter conhecido uma ou duas comunidades, generalizaram para a espécie humana, de modo que a visão total da humanidade fica reduzida ao tamanhinho da amplitude de consciência de dois ou três antropólogos, que viram meia dúzia de coisas. Nas ciências humanas, isso se tornou norma no século XX: o indivíduo proclama que tudo o que ele não viu não existe e tudo o que está fora de seu círculo de experiência só pode existir como invenção, como crença ou como criação cultural e portanto não tem importância nenhuma.
Uma educação baseada nisso seria uma deseducação, porque ela está de cara bloqueando a possibilidade de certas experiências.
A humanidade toda deixou documentos de pessoas que conversaram com Deus. Eles não existiram? São milhões e milhões de documentos, falei com Deus e obtive tal resposta. Falar com Deus e obter tal resposta é uma experiência. É algo que acontece ou não acontece. Não é uma teoria evidentemente, é um fato, ou ele é fictício ou ele é real. Algum antropólogo de alguma universidade já convidou alguém para fazer essa experiência e ver o que acontece? Alguém ensinou a você: para falar com Deus é assim e assado, a coisa tem uma lógica, requer um certo tempo, tem um vai-e-vem, tem um feedback? Não, porque eles também não sabem. Dizem que houve pessoas que acreditaram em Deus, Deus é uma crença e nada sabemos a respeito. Como nada sabemos a respeito? E esses depoimentos todos? Vamos fazer de conta que nada disso existiu? Toda essa gente estava no mundo da lua e você foi o primeiro que descobriu a realidade? Construíram-se civilizações, legislações, sociedades, vidas humanas, tudo em cima disso, e era ficção? Prefiro apostar na hipótese contrária de que esse pessoal todo sabia do que estava falando. Ou seja, algo nos aconteceu e se não temos o mínimo acesso a esse tipo de vivência então nada sabemos a respeito, e não é uma atitude científica rotular de crença o que você não sabe o que é.
Durante quanto tempo você é capaz de manter um fio de raciocínio dentro de si, sem se dispersar completamente? Vamos chamar de raciocínio, o encadeamento de silogismos - premissa maior, premissa menor, conclusão. Quantos silogismos em linha você é capaz de fazer dentro de si, sem se dispersar e perder o fio da meada? Um, dois e olhe lá. Isto quer dizer que a dispersão é o seu estado habitual. Compare-se, por exemplo, a um praticante de uma mística ascética qualquer, que aprende a se concentrar numa palavra ou um nome que designa uma qualidade divina durante, digamos, dezesseis horas seguidas; que aprende a afastar qualquer outro pensamento de sua mente. Você acha realmente que a visão que o homem disperso tem pode ser idêntica à do homem concentrado? É claro que não. Isto quer dizer que, em outras épocas, houve homens muito concentrados, capazes de limpidez de pensamento, de auto-consciência - e logo explico o que quero dizer com essa auto-consciência - e que tiveram acesso a certas experiências e deixaram testemunhos delas, e esses documentos são preciosos. Mais tarde, aparece um sujeito sem concentração nenhuma, uma alma totalmente dispersa, totalmente fragmentada, com auto-conhecimento precaríssimo, dizendo que tudo são crenças. Ora, faça-me o favor!, isto é a anti-educação. Se queremos entender esses documentos, temos que criar a condição psicológica para refazer as experiências que estão subentendidas neles.
Alguém já ouviu falar da prece perpétua? É uma técnica da igreja ortodoxa. Existe um livro extraordinário sobre isso chamado "Relatos de um peregrino russo" - uma abreviatura de milhares de escritos dos místicos ortodoxos ao longo do tempo. O peregrino russo é um homem simples que um dia ouve na missa o padre dizer a sentença de Jesus: orai sem cessar. Ele diz: " como orai sem cessar? Ninguém pode orar sem cessar, a gente reza e depois vai fazer outra coisa." Sai então procurando, pergunta para um, pergunta para outro, até que encontra um monge que diz: " você vai rezar junto com o ritmo de sua respiração, vai dizer Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim; e vai dizer isso com plena intenção; você só quer uma coisa na vida: que Jesus tenha pena de você. Vai esquecer todo o resto e vai fazer isso, vinte e quatro horas por dia, pelo resto de sua vida." Talvez, se conseguir prestar atenção na piedade divina, com um pouco dessa concentração, acabe percebendo que ela existe. Agora, pelo simples fato de ter lido sobre esse negócio de piedade divina, você diz que isso é crença? Mas, como? Você conhece a coisa, sabe do fenômeno que está sendo falado, ou sabe somente as palavras?
Assim como esta prática existem milhares no mundo - budistas, judaicas, islâmicas, hinduístas e outras. Tudo isto é totalmente desconhecido do ensino moderno. O ensino se tornou uma arte de falar sobre coisas que se desconhece completamente. Não estou me referindo ao ensino religioso. Se pedir ao padre, ao rabino, ou ao aiatolá, ele vai ensinar a você algumas coisas da religião dele, o formulário de crenças dele, e vai dizer que todas as outras não interessam. Ele também já não está falando de experiências, está falando de uma crença determinada. Não é disso que estou falando. Estou falando de realidades e não de formulários de dogmas que dizem que isso está certo e aquilo está errado. Do mesmo modo, as experiências subjacentes à filosofia de Platão ou à filosofia de Aristóteles também são condições indispensáveis para que você as compreenda. Quando Platão falava na Academia, ou Aristóteles no Liceu, eram literalmente homens maduros falando com outros homens maduros. Não era uma discussão entre almas dispersas.
Todos aqui já sentiram, por exemplo, acessos de tristeza ou de desespero que não sabiam de onde vieram. Todo mundo já teve isso. Ora, se existe algo na sua própria alma que você não sabe de onde veio, existe um conteúdo que é estranho a você. Ou seja, a sua alma é tão conhecida sua, quanto uma cidade onde acaba de desembarcar pela primeira vez; você está perdido dentro de você. Sua alma é o instrumento pelo qual você conhece o mundo, mas se ela própria é tão desconhecida assim, quantos metros espera avançar no caminho do conhecimento, antes de ter limpado as lentes com que vai olhar este mundo? Uma certa limpidez da alma, portanto, um certo conhecimento do indivíduo por ele mesmo, de modo que ele saiba de onde vêm suas emoções, de onde vêm seus desejos e o que o compõe efetivamente por dentro, são condições sine qua non da verdadeira educação. Não existe a educação sem o efetivo auto-conhecimento. Mas, se num curso de filosofia universitário, você levantar este problema, dirão: "se quer auto-conhecimento, que vá procurar um padre ou um psicanalista, que nós estamos aqui para estudar filosofia." Que raio de filosofia é esta que não se preocupa nem em saber se a alma do sujeito está habilitada para aquilo? Que raio de ensino é este que não cumpre a condição da maturidade que o próprio Aristóteles e o próprio Platão colocam como condição básica para o estudo da filosofia? Isto quer dizer que, ao longo dos tempos, a noção de educação foi sendo perdida. Ela é conservada apenas em núcleos muito limitados; há grupos de pessoas que sabem e continuam cultivando aquilo, como sempre. Mas o ensino de massas, público e privado, não está dando às pessoas senão um grosseiro simulacro de educação. Não cabe a mim julgá-lo ou modificá-lo; não sou ministro da educação, nem quero ser. Se me pedissem um projeto de educação nacional, me esconderia debaixo da cama e pedir socorro à minha mãe. Esse problema está acima da minha capacidade, como está acima da capacidade do ministro da educação ou de qualquer outro que ocupe o lugar dele.
(fonte: http://www.olavodecarvalho.org/palestras/2001educacaoliberal.htm)

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